Não há mesas nesta esplanada no bairro central de Mitte, em Berlim, na Alemanha, só cadeiras, para ficar na preguiça ou na conversa, a aproveitar o sol que com Outubro no fim já vai rareando. Fala-se alemão, inglês, espanhol, francês e é quase impossível estar aqui sem ouvir também falar português. E não se pense que é por o café se chamar Galão – assim baptizado depois de os donos alemães se terem apaixonado, em Portugal, pelo café com leite – ou por se encontrarem aqui produtos como a bebida que lhe dá o nome, pastéis de nata, leite achocolatado Ucal ou Água de Carvalhelhos.
O Galão é uma das paragens dos artistas na cidade e basta estar atento para perceber que a cosmopolita esplanada é quase uma miniatura desta Berlim que se tornou um dos mais importantes palcos de arte contemporânea, dando guarida a artistas vindos dos quatro cantos do planeta. De Portugal serão agora mais de duas dezenas de artistas plásticos, músicos, bailarinos, actores, realizadores, que se misturam neste andamento artístico que junta estrangeiros e alemães.
Mas, afinal, o que é que Berlim tem?
De galão na mão, o cineasta Hugo Vieira da Silva, 33 anos, a viver aqui há mais de sete, avança uma explicação: «Berlim atrai muitos artistas porque é barata e tem imenso espaço.» Dois dias depois, na mesma esplanada da antiga zona leste, os artistas plásticos Noé Sendas, 35 anos, e Rui Calçada Bastos, 36, confirmam a ideia, dentro dos seus casacos de Inverno que ajudam a combater o frio (também já há gorros, cachecóis e mantas sobre as pernas). Passam pessoas a pé ou de bicicleta – o meio de transporte favorito, sobretudo enquanto não chega a chuva e a neve. Carros, quase só os de bebé. Hão-de contar-nos que Mitte é o bairro europeu com mais crianças pequenas por metro quadrado, para o que não será indiferente o facto de o governo dar dois anos de licença de maternidade, paga a cerca de 800 euros por mês.
Cidade falsa
Noé Sendas foi dos primeiros portugueses a chegar a Berlim, precedido apenas pelo músico Carlos Bica e por poucos mais. Em 1999, recebeu a bolsa João Hogan, da Fundação Calouste Gulbenkian, para a primeira residência artística de 11 meses na Kunstlerhaus Bethanien, um antigo hospital transformado em lugar de artes. Desde então, todos os anos chega, com aquela bolsa, mais um artista: Gabriela Albergaria, Nuno Cera, Rui Calçada Bastos, Jorge Queirós, Leonor Antunes, Sancho Silva e Adriana Molder. Até hoje, nenhum voltou a Lisboa, apenas Gabriela se divide, desde o Verão, entre as duas cidades, e Sancho está com outra bolsa no Canadá.
«Berlim é muito especial, quase falsa, no sentido em que não tem nada a ver com as outras cidades alemãs», afirma Noé Sendas. A história ajuda a perceber porquê. Destruída quase por completo durante a II Guerra Mundial, transformou-se num sítio pobre, que o Muro veio tornar ainda menos atractivo. A isto veio juntar-se uma quebra dos rígidos costumes alemães, no lado ocidental, embalada pelos movimentos underground de finais dos anos 70, que, do lado oriental, também iam ganhando adeptos, apesar das repressões. Com a queda do Muro, o clima de permissividade alargou-se a toda a cidade, que na zona leste viu muitas pessoas partirem, deixando para trás casas vazias, algumas sem dono, outras com rendas muito baratas. Haverá terreno mais fértil para culturas de vanguarda, alternativas e experimentalistas?
Foi esse o ambiente que atraiu Hugo Vieira da Silva. «Não vim à procura de um trampolim profissional, vim talvez por motivos românticos, uma espécie de paixão por um espaço que sempre foi um pólo criativo», explica o realizador de Body Rice, um filme que nasceu em 2006 e entretanto já passou por festivais de cinema numa dúzia de países. E é nesta cidade que Hugo se prepara para rodar, já no Inverno, uma nova longa-metragem, Cruz Vermelha, uma co-produção portuguesa (Paulo Branco) e alemã. Um olhar sobre a «confrontação com outra cultura», filmado não na «bolha» artística dos bairros de Mitte, Prenzlauer Berg e Kreuzberg, mas nas periferias onde o desemprego e as questões raciais florescem, «zonas que não são evidentes para quem aterra em Berlim pela primeira vez», sublinha Hugo.
No número 10 da Brunnenstrasse, alguns dos nomes nas campainhas são familiares: Sendas, Bastos, Cera, Albergaria, Queirós. É nesta antiga fábrica, transformada em edifício de ateliês, que trabalham alguns dos artistas portugueses. Lá dentro, no pátio, ainda se vêem buracos de balas numa parede – já são poucos os vestígios da guerra que sobrevivem à intensa modernização e à restauração dos cinzentos edifícios do tempo do comunismo. O elevador está desactivado, por isso é preciso galgar quatro andares para chegar à pequena sala alugada por Noé Sendas, quando regressou à capital alemã, ao fim de cinco anos em Lisboa, depois da residência no Bethanien.
«Com o dinheiro que se ganha em Portugal pode-se viver aqui em Berlim, mas não em Londres, Paris ou Nova Iorque», conta o artista plástico, que preferiu esta cidade a muitas das outras onde já tinha feito residências, como aquelas duas capitais europeias ou Veneza.
«Aqui consegue-se ter uma vida. Nas grandes cidades, é muito duro», nota Adriana Molder, 31 anos. A terminar a sua residência na Kunstlerhaus Bethanien e decidida a ficar em Berlim, a pintora procura agora casa e ateliê que substituam esta grande sala, de pé-direito altíssimo, onde no último ano viveu e trabalhou. Há folhas de papel esquisso, pintadas a tinta-da-china, por todo o lado. Num canto, uma cama, um sofá e uma televisão que, a par da bancada de cozinha, dão um ar doméstico ao ateliê. Umas portas ao lado está a sua exposição final de residência, O Desvendador de Sonhos, «uma espécie de ficção, inspirada em histórias de fantasmas alemãs, a partir do ambiente do Bethanien, sobre um homem que fica doente no século XIX e está neste quarto, onde tem visões que vêm ter comigo, através dos sonhos».
Tanto espaço
«Berlim é muito vazia, o que permite andar na rua de outra forma e utilizá-la como um ateliê. Posso filmar e fotografar sem a confusão e a insegurança das grandes cidades», afirma Noé Sendas, que aqui começou a construir esculturas das suas personagens, antes apenas filmadas. Depois de O Coleccionador de Auto-Retratos (exposto este Verão no Museu da Electricidade, em Lisboa), trabalha agora em The Hunter, que irá apresentar, no princípio de 2008, na galeria Cristina Guerra.
Em Berlim vivem hoje cerca de 3,4 milhões de pessoas. O número parece grande, mas se pensarmos que é a maior cidade da Alemanha (mais de dez vezes a área de Lisboa, que tem cerca de 600 mil habitantes), percebemos que os moradores se diluem no espaço. Não é de admirar, por isso, que todos concordem com a bailarina Cláudia de Serpa Soares, quando ela diz que «há, em Berlim, uma sensação de espaço, e de conseguirmos ter um espaço para nós».
Cláudia, 34 anos, chegou em 1999, depois de ter feito uma audição com a famosa coreógrafa Sasha Waltz e ter sido convidada a integrar a sua companhia de dança. Acabada de regressar de Estocolmo e Oslo, onde apresentou Impromptu, confessa que hoje passa mais tempo em viagem do que na capital alemã, por força dos espectáculos de Sasha, em cuja companhia hoje actua como free-lancer, e de outros mais independentes, que agora tem tempo para fazer.
É também de espaço que fala Rita Só quando tenta explicar por que razão trocou Lisboa por Berlim, há exactamente um ano. Um espaço tanto físico como mental, esclarece a actriz, de 29 anos, que ainda este Verão veio a Lisboa participar na peça de Monica Calle A Última Ceia ou Sobre O Cerejal de Anton Tchékhov, na Casa Conveniente, onde tem trabalhado nos últimos anos. «A cidade é forte, caprichosa, ocupa-nos e, por outro lado, dá-nos todo o espaço do mundo. Como se pudéssemos criar aqui o nosso microclima. Possibilita-me um crescimento pessoal e uma concentração que não estava a conseguir em Lisboa», explica Rita, sentada num dos cafés mais centrais da cidade, o St. Oberholz, na Rosenthaler Platz, rodeada de pessoas a trabalhar nos seus computadores portáteis. «É uma cidade onde nos encontramos a nós próprios», acrescenta.
Movimento tranquilo
No quinto andar de um prédio cor de tijolo, por cima dos telhados da vizinhança, na zona de Jannowitzbrucke, com vista para a torre da televisão Berliner Fernsehturm, um dos ícones da cidade, Filipa César, 32 anos, elogia, sem reticências, a Berlim que a recebeu já lá vão sete anos:
«Tem um ritmo tranquilo, uma qualidade de vida excepcional.» Por outras palavras: o ideal para uma mãe com uma criança de 2 anos – Rosa, fruto do seu casamento com um actor alemão – e para uma artista plástica cujo trabalho «documenta» pessoas e situações na cidade e observa a forma como o cinema influencia os nossos comportamentos (os vídeos Waiting Citizen, Romance Reedit e Berlin Zoo, por exemplo).
Para Filipa, foi amor à primeira vista. «Apaixonei-me imediatamente. Tive a sensação de que a cidade tinha qualquer coisa de inacabado, estava em movimento, com quase tudo por fazer. Era uma cidade que, tal como eu, ainda não estava definida, um óptimo sítio para viver e me desenvolver com ela», recorda. Um sentimento semelhante ao de Noé Sendas: «Estava a aparecer muita coisa a nível cultural e fiquei com vontade de me juntar a esse movimento.»
Hoje, as portas continuam abertas a quem venha de fora. E, com o desenvolvimento em tempo recorde que a cidade sofreu desde que o Muro caiu, em 1989, Berlim está a transformar-se num dos principais centros de arte mundiais. Instalam-se galerias de Nova Iorque, Londres e Paris, chegam curadores para ver o que se passa, olham-se as tendências que surgem nos cada vez mais numerosos espaços geridos por artistas, cruzam-se experiências e projectos. A agitação é tão grande que já há quem tenha nostalgia dos tempos underground e alternativos da cidade...
No Berlin Calling, um caderno vermelho, com 60 páginas, que reúne tudo o que de cultural acontece na cidade durante cinco meses, descobre-se o nome de Jorge Queirós numa mostra colectiva que terminou em Julho, encontra-se a exposição de Adriana Molder e, mais adiante, a referência a Leonor Antunes, que tem uma peça na exposição Minimalism and Applied, na galeria de arte contemporânea da Daimler Chrysler, até 7 de Janeiro. Modo de Usar #11, de 2005, foi adquirida pela colecção em 2006 e é uma das esculturas feitas, já em Berlim, da série de réplicas de elementos arquitectónicos.
«Quando cá cheguei trabalhei muito sobre a ideia de duplicação, a partir dos edifícios que a divisão da cidade pelo Muro obrigou a recriar, do lado ocidental», conta Leonor Antunes, 35 anos, há três em Berlim. «Pensei que continuando em Portugal não ia longe... Aqui o patamar de qualidade é outro. A partir do momento em que estou num sítio com pessoas estimulantes à minha volta, muda tudo», afirma a artista, sentada num sofá verde que contrasta com o branco das paredes e do chão da sua casa.
De partida para o Brasil, com uma bolsa espanhola, prepara-se para desenvolver um projecto sobre as primeiras obras de Niemeyer, «um arquitecto também bastante copiado». Só na Brunnenstrasse, no bairro Mitte, existem 17 galerias de arte. Uma delas, a Invaliden 1, tem como donos quatro artistas plásticos espanhóis e o português Rui Calçada Bastos, que a dirigem. «Não sou galerista nem quero ser, mas isto serve para entrarmos na cidade, como montra do nosso trabalho», reconhece Rui. Num dos cantos, as fotos do seu último vídeo, Self-portrait While Thinking, imagens que documentam um tique que tem quando está concentrado, agora em exposição na Feira de Arte de Lisboa, através da galeria Vera Cortez.
«Em Portugal, vivemos um bocadinho fechados no nosso ateliê, mostramos as nossas coisas aos amigos. Aqui temos visibilidade e confrontamos constantemente o nosso trabalho com o de outros artistas», nota Calçada Bastos que, em Setembro, foi, como Filipa César, um dos convidados a apresentar a sua obra num ateliê da Tate Modern, em Londres.
Para Noé Sendas, «há que respeitar Lisboa, porque muitas coisas surgem de lá, mas é preciso ter noção que para os países com peso cultural ela existe como uma cidade da Turquia. Em Berlim, pode ser mais difícil triunfar, porque há muito mais artistas, mas cada passo é um passo real».
Berlim existe, portanto, e o que ali se faz também. «O público aqui é muito maior. Em Lisboa, percebemos que, ao fim de dez anos, estamos a criar espectáculos para a mesma meia dúzia de pessoas, que são outros artistas. Dá-se muito e recebe-se pouco, e isso tem feito com que pessoas interessantes a nível artístico se venham embora. Acho Lisboa uma cidade rica culturalmente, mas a energia não está no sítio certo», lamenta Rita Só.
E dá milhões?
Na sala de um antigo consultório dentário, Catarina Simões, 34 anos, montou a sua casa e ateliê, quando se mudou de Nova Iorque, onde esteve quatro anos. «É uma residência alternativa», afirma Catarina, apagando um cigarro num molde de dentes em gesso que serve de cinzeiro – há outros moldes e ferramentas de dentista guardados para um projecto futuro. «É importante sair e ver coisas novas. Nova Iorque mudou bastante depois do 11 de Setembro, ficou mais conservadora e às tantas deixou de fazer sentido ficar numa cidade onde é tão difícil viver», afirma a artista plástica, que tem passado horas em frente ao computador, a montar o seu último vídeo.
«O que se está a passar em Berlim, este cosmopolitismo todo, com imensos artistas de todo o mundo, quase a parecer Nova Iorque nos anos 60, é muito interessante, porque está a criar uma nova mistura cultural, que não existiu no pós-guerra. E está a trazer modos de ver, pensar e viver diferentes», aponta Filipa César. Se a ouvisse, Hugo Vieira da Silva seguramente concordaria: «O cinema na Alemanha vai mudar quando os estrangeiros que cá estão começarem a ser aceites. É sintomático que, este ano, o argumento alemão vencedor em Cannes seja de um turco [The Edge of Heaven, de Faith Akin].»
E dinheiro, será que vem também nesta onda? Há quem acredite que sim, que este movimento artístico contribuirá para Berlim deixar de ser uma cidade falida, mas por enquanto a capital alemã funciona mais como espaço de trabalho e de mostra do que de negócio. A confiança do mercado demora a conquistar, sublinha Rui Calçada Bastos, que como Noé Sendas e Adriana Molder tem a sua galeria-mãe em Lisboa, ou como Filipa César, que trabalha com três galerias, todas fora da Alemanha (Lisboa, Madrid e Zurique). Já Leonor Antunes vende a maioria das suas peças aqui, através da galeria Isabella Bortolozzi, mas sabe que quase não tem compradores alemães.
Não se adivinha se o trabalho de todos estes artistas poderá ajudar Berlim a saltar mais este muro, mas uma coisa é certa: a arte contemporânea portuguesa é cada vez mais berliner.
* Sou um berlinense
http://aeiou.visao.pt/Actualidade/Cultura/Pages/Ichbinberliner.aspx